Certamente, muitos são os mal-entendidos acerca da verdadeira atividade daquele que se dedica à filosofia. Existe uma suposição corrente, mais ou menos explícita, de que filosofar é estudar “opiniões de filósofos”, o que autores clássicos e contemporâneos pensam sobre este ou aquele assunto.

Na cabeça de muita gente, uma obra filosófica é um conjunto de opiniões de um pensador consagrado, ao estilo de um compilado de crônicas diárias sobre acontecimentos jornalísticos. Os diálogos de Platão seriam suas análises pessoais, uma sobre o amor, outra sobre a justiça, outra ainda sobre a piedade, mais uma sobre as ideias. As obras de Kant trariam o que ele achava do conhecimento, da ética, da estética.

Os grandes filósofos seriam pessoas extraordinariamente inteligentes (ou não) opinando sobre as coisas do mundo, com muito mais autoridade do que nós (ou não) por serem melhores analistas.

Trata-se de uma superficialidade sem fim. Por mais que seja verdade que os grandes filósofos da tradição são, sem sombra de dúvidas, mentes muito superiores às nossas, não é aí que reside a diferença entre o que fazem e nossas opiniões cotidianas sobre o universo, a vida, a política, o Neymar e a novela das sete. Trata-se, antes, de uma distinção essencial.

Um texto filosófico não é um “conjunto de opiniões” do autor sobre temas considerados “metafísicos”. Trata-se de algo inteiramente diverso. Uma filosofia é um caminho para a compreensão da realidade. O que um filósofo oferece é um sistema que permite interpretar o todo da realidade à nossa volta, a partir da articulação de conceitos que expressam percepções fundamentais sobre o mundo e seus infinitos aspectos.

Certamente, ao fazê-lo, o pensador proporá visões pessoais sobre inúmeros temas particulares. A “Crítica da razão pura” traz a concepção de Kant sobre o tempo e o espaço. “O banquete” traz o ponto de vista de Platão sobre o amor. “Ser e tempo” contém a visão de Heidegger sobre a metafísica de Deus como puro ato de ser.

É, entretanto, um erro muito comum supor que se deve ler uma filosofia por esse viés, como se o filósofo estivesse colecionando suas opiniões sobre o universo e suas questões. O que interessa na filosofia não é “o que o filósofo pensa” sobre tal ou qual tema, mas como ele constrói um instrumental profundíssimo que nos guia na compreensão da realidade.

Grandes filósofos não adquiriram sua magnificência por suas opiniões. Opiniões qualquer um tem. O que faz um filósofo entrar para o panteão dos grandes que serão estudados ao longo das gerações é ter proposto um sistema de compreensão da realidade, que serve de ponto de apoio em nossa própria jornada intelectual por este mundo. O pensamento de um desses filósofos é, muito mais do que um conjunto de pareceres, uma estrutura conceitual que nos ilumina as camadas mais profundas da realidade, permitindo-nos pensar com eles, ao seu lado – o que não precisa significar reproduzindo-o em tudo.

Quem estuda um grande filósofo não deve estar preocupado em “concordar com ele” ou em “discordar dele”. Concordar ou discordar, fazemo-lo em relação ao comentarista da mesa redonda de futebol ou ao cronista político da bancada do telejornal. Concordar com Aristóteles ou discordar de Kant é uma grande banalidade.

Antes, devemos caminhar ao lado deles, acompanhá-los enquanto nos apresentam um mundo novo de grande descoberta, fincado numa estrutura conceitual que nos permitirá enxergar muito mais longe do que jamais sonhamos. Filosofamos ao lado de Platão, conversando com Santo Agostinho, em colóquio com Hegel. Pensamos deixando que eles nos conduzam. Filosofar é uma atividade que está numa categoria muito superior ao plano do concordar com este ou discordar daquele.

Inúmeras vezes, pensa-se estar discutindo filosofia quando se comentam opiniões particulares de filósofos sobre algum assunto. “Aristóteles era a favor da escravidão”. Certo, mas me diga, quais são as categorias? Se você não sabe e não se preocupou com isso, não está se ocupando verdadeiramente de Filosofia. “Mas Kant achava que a Revolução Francesa...”. Está bem, mas me conte, quais são as formas do juízo e como elas se relacionam com as categorias (as kantianas, não as aristotélicas)? Se isso você não estudou, ainda não passou do campo das superficialidades opinativas.

Interessar-se por opiniões específicas de filósofos sobre questões individuais, retiradas de algum ponto do sistema filosófico, não é fazer filosofia, mas fofoca filosófica. É, basicamente, confundir Aristóteles com Guga Chacra.

Note-se que não estou me referindo necessariamente a opiniões estritamente privadas manifestadas em algum registro biográfico, sem reflexo na obra filosófica. Mesmo que sejam pontos de vistas encontrados no caminho do sistema construído nas obras principais do autor, elas não interessam como tais, individualmente, mas apenas na medida em que tomam parte da visão de mundo a que o pensador nos apresenta, a qual poderá, ela própria, uma vez compreendida em sua essência, servir-nos de critério para encontrar aporias, solucionar contradições e separar o joio do trigo no próprio pensamento pessoal do filósofo que ora nos guia.

O que Aristóteles pensava sobre a escravidão, o que Kant pensava sobre a Revolução Francesa ou sobre vida extraterrestre, o que Santo Tomás de Aquino pensava sobre a Inquisição, o que Hegel admirava no Estado prussiano pode possuir alguma relevância para a história, mas para a filosofia, em si mesmo, não significa rigorosamente nada.

O que importa para a filosofia é o sistema das ciências erguido por Aristóteles, em seus métodos e em seus ramos. É o realismo crítico de Kant e o modo como supera as contradições da metafísica racionalista e do ceticismo empirista. É a monumental síntese filosófico-teológica de Tomás, que uniu os fios do platonismo e do aristotelismo, aparentemente antagonistas. É a cosmovisão integral de Hegel, sintetizada como nunca antes se viu num único sistema explicativo da realidade.

“Ain, Kant era racista”. Sim, é claro que ele era racista. Ele era um alemão puritano do século XVIII. Se você fosse um pietista da setecentista Königsberg, você também seria racista. E, se Kant vivesse hoje, provavelmente não seria. Por outro lado, a “Crítica da razão pura” você não escreveria em nenhum século, em nenhum país, nem que chovesse canivete. Mesmo que fosse possível a reencarnação e lhe fossem dadas trinta vidas, você não escreveria. Essa é a diferença. É por isso que estudamos Kant mais de duzentos anos depois de sua morte e continuaremos estudando enquanto subsistir este mundo. É por sua filosofia, não por suas opiniões.

É claro que Tomás defendia a pena de morte na Inquisição. Ele era um religioso dominicano do século XIII. Se você fosse um católico devoto do Medievo, você também se preocuparia em dar como corretas as atitudes institucionais da Igreja. Se Tomás vivesse hoje, não defenderia (e, ainda assim, há conservadores atuais, certamente muito inferiores a Tomás, que defendem). Entretanto, nem com a pedra filosofal e o elixir da imortalidade qualquer um de nós escreveria a “Suma teológica” nos próximo novecentos anos.

Todos os grandes filósofos, sem exceção, disseram besteiras, reproduziram as idiossincrasias de sua época, manifestaram opiniões pouco compreensíveis. Simplesmente porque isso é humano. Filósofos são de carne e osso e cozinham com água. A imensidão dos assuntos empíricos – sociais, factuais, culturais, linguísticos – é, por natureza, extremamente dinâmica e sujeita a alterações de percepções pela falibilidade dos nossos sentidos.

Isso os faz simplesmente iguais a todos nós. Todos dizem besteiras de vez em quando. Nem todo o mundo, entretanto, escreve a “Ética a Nicômaco” ou “Ser e tempo”. Isso é o que distingue os filósofos. Não são suas opiniões sobre assuntos vários, nem mesmo suas concepções sobre temas ontológicos (que estão no centro do filosofar, mas, tomadas isoladamente, ainda não são a autêntica atividade filosófica). É sua capacidade de erguer um sistema de intelecção do universo e de suas múltiplas categorias, legando-nos uma luz que brilha pelos milênios, abrindo-nos um diálogo que se ouve por gerações e gerações de homens que buscaram refletir, amparados em ombros de gigantes.

Faça filosofia, não fofoca filosófica. Vá além da superfície das opiniões que você pode julgar risíveis ou facilmente refutáveis. Dou minha palavra: é muito mais fascinante.

 

*Gustavo França é advogado, graduado em Direito pela UERJ e mestre em Filosofia pela UFRJ. Concluiu o Doutorado em Filosofia na Universidad de Navarra, em Pamplona, Espanha. Estuda particularmente Kant, Filosofia Moral, Filosofia do Direito, ética das virtudes, fundamentos da vida intelectual.