Certamente, o saber humano e sua dinâmica se alteraram profundamente desde as revoluções científicas da modernidade. As progressivas ramificações e especializações das ciências particulares causam grande perplexidade aos que se põem a observar o estado do conhecimento humano, que, se, por um lado, parece avançar mais rapidamente do que nunca, por outro, parece fatalmente fragmentado e incompreensível a qualquer um não iniciado em cada microárea específica.
Ora, a Filosofia é a disciplina à qual cabe a reflexão racional sobre o estatuto e o sentido do conhecimento como um todo e, portanto, sobre cada ciência, seu valor e sua integração ao edifício do saber humano. Primeira entre as ciências (porque aquela cujo objeto é o fundamento de todas as demais e a única capaz de responder algo sobre a razão de ser de cada disciplina), ela parece hoje desacreditada e de mãos atadas.
A emancipação dos ramos do saber, todos gestados em seu ventre, parece ter sido uma ruptura dolorosa e fatal. As comunidades científicas gabam-se de substituir a reflexão filosófica em suas descobertas. Entretanto, apenas a Filosofia pode assumir a missão de reconstruir uma unidade do conhecimento, perdida na especialização que cada dia mais estreita os horizontes dos homens.
Para isso, contudo, é preciso que ela própria tome consciência da natureza da tarefa que lhe cabe, a partir de uma visão abrangente e arguta das novas realidades.
No mundo antigo, havia entre os ramos do saber uma unidade que podemos chamar de ontológica. As diversas ciências compartilhavam seus objetos, que também faziam parte do dia a dia do homem ordinário. Cientistas falavam das mesmas coisas que eram vistas por toda a comunidade. O biólogo falava de cavalos e de flores, o filósofo refletia sobre a substância de cavalos e de flores, e as pessoas na rua montavam cavalos e cheiravam flores.
Nesse mundo, a profunda integração entre os diversos conhecimentos numa única estrutura era simplesmente um fato, acessível à compreensão comum de todos. A filosofia exercia o seu papel de mãe das ciências pela precedência real de seu discurso sobre os demais, cuja dependência daquele era clara na própria lógica interna de cada âmbito de estudo.
Com o desenvolvimento técnico de uma ampla gama de estudos específicos sobre entes muito particulares, as ciências passaram a se dedicar a objetos só vistos por elas, cujo estudo exige o desenvolvimento de uma linguagem própria, adequada para aquele pequeno mundo particular que agora se abria.
Hoje, o físico fala de quarks. Ninguém vê quarks por aí. Exceto o jurista, ninguém se depara com contratos de leasing em seu caminho diário. Salvo o economista, ninguém tem notícia de utilidades marginais ao longo de sua vida. Cada ciência lida com uma realidade restrita a seu próprio laboratório, impermeável à sociedade como um todo e fora dos limites da compreensão de quem não possua treinamento técnico na área.
Nesse contexto, há quem defenda que devemos retornar a uma unidade ontológica entre os saberes. A meu ver, isso é impossível. A especialização e a autonomia das ciências particulares não são más, mas simplesmente um fato que marca o conhecimento humano no mundo contemporâneo. Não é possível abrir mão dela.
Censurar um cientista e querer obrigá-lo a falar de substâncias e não de quarks é apenas o caminho para se tornar motivo de piada. Se não fossem seus estudos sobre quarks, não haveria telefones celulares.
A unidade ontológica do conhecimento não retornará. A tarefa da Filosofia é reconduzir-nos a outro tipo de unidade – uma unidade metódica. No meio da babel dos discursos científicos herméticos, a luz que a Filosofia nos traz é sua missão inalienável de apresentar com rigor a distinção entre as diversas categorias da realidade e de identificar aquela em que nos situamos quando afirmamos uma coisa ou outra.
O drama que causa grande perplexidade a quem observe o estado das ciências em nossos dias é que cada estudioso parece dizer coisas sobre a realidade totalmente distintas uns dos outros, gerando grandes conflitos entre interpretações do mundo incomunicáveis, pois assentadas em dados vindos de métodos completamente alheios.
Boa parte dos principais dilemas do debate público de nossos dias são conflitos meramente aparentes, pois as teses que se chocam não se referem à mesma categoria da realidade. A boa filosofia é chamada a intervir para esclarecer essa distinção categorial, dando a cada um dos contendores a consciência do real estatuto de seus estudos e de suas teorias.
Ilustro o que digo com dois exemplos históricos de ocasiões em que a Filosofia exerceu esse papel mediador na efervescência de grandes dilemas teóricos.
O primeiro ocorreu no auge da Idade Média, quando a redescoberta da filosofia aristotélica vinha trazendo uma grande tensão com a cosmovisão cristã vigente. Um desses pontos de atrito era a tese de Aristóteles da eternidade do mundo, acusada de contradizer a fé cristã na criação.
Em famoso opúsculo sobre o tema, Santo Tomás de Aquino mostra que esse conflito apontado era fruto de um erro categorial. A eternidade do mundo, conforme pensada por Aristóteles, era uma tese física, sobre a estrutura material do mundo. A criação não é um evento físico, mas um postulado metafísico-teologal derivado da necessidade constatável de que tudo que existe tenha uma causa fora de si.
A criação não é uma origem temporal para o mundo, um fato que possa ser localizado no tempo (não existe um “quando” Deus criou o mundo, como um quando Cristóvão Colombo descobriu a América). Não existe um “antes” da criação, ou um “depois” da criação. A criação ocorre fora do tempo, e o próprio tempo é criado nela. A criação é a origem metafísica da totalidade do mundo e de seus processos materiais, inclusive o tempo.
Portanto, é perfeitamente possível que o mundo tenha sido criado por Deus e, ao mesmo tempo, tenha existido sempre. Não cabe ao cristão que filosofa afirmar que “o mundo não pode ser eterno porque Deus o criou”, mas simplesmente “ainda que o mundo fosse eterno, Deus o criou”.
O segundo caso se deu no século XVIII, quando o triunfo da física newtoniana, que é determinista, vinha pondo em risco a afirmação da liberdade humana. Immanuel Kant intervém com uma solução bastante análoga à dada por Tomás na questão anterior.
Na Terceira Seção da “Fundamentação da metafísica dos costumes” (provavelmente, seu texto central sobre o problema da liberdade), Kant demonstra que mais uma vez estamos diante de um erro categorial.
A liberdade não é uma causa física, que possa competir com as demais causas mecânicas do mundo material. A liberdade é um fato metafísico, constatável em nossa consciência de nós mesmos como seres capazes de dar às suas ações uma causalidade absolutamente independente das causas naturais.
A liberdade não é uma realidade empírica e não pode ser observada empiricamente. Não é possível provar que o homem é livre. Entretanto, todo indivíduo, ao agir, pressupõe necessariamente que é livre para fazê-lo ou não. Mais do que isso, não é possível ao homem agir salvo pressupondo a liberdade.
Até mesmo para negar a liberdade é preciso pressupor que se é livre para defender tal tese e que os demais são livres para concordar com ela. Da mesma forma, o criminoso que alega que não deve ser condenado porque estava absolutamente determinado a cometer o delito, ao fazê-lo, necessariamente pressupõe que o juiz é livre para condená-lo ou não.
Por conseguinte, a física ser determinista nada diz a respeito da liberdade. São categorias distintas da realidade. Hoje, há quem defenda a liberdade invocando o fato de que a física quântica não é determinista. A liberdade não precisa disso. Não faz sentido afirmar “o homem é livre porque a física não é determinista”, mas antes “ainda que a física fosse determinista, o homem é livre”.
Creio que muitos dos graves questionamentos de visões de mundo que enfrentamos no âmbito das ciências contemporâneas se dão por uma incompreensão desse ponto essencial – da adequada distinção entre a categoria da realidade a que pertence cada afirmação. É o caso do embate entre evolução e criação (a primeira, uma explicação biológica do surgimento das espécies como entes fisiológicos; a segunda, uma tese metafísico-teologal sobre o fundamento ontológico da alma humana), que reúne cientistas tentando fazer filosofia com evidências empíricas e filósofos e teólogos tentando intervir em ciência com princípios metafísicos.
A grande perplexidade do conhecimento humano hoje é o fenômeno de que, num mesmo campus universitário, a determinada hora, é possível que um professor de Física esteja ensinando que seres humanos são quarks, e um professor de Direito esteja ensinando que seres humanos são pessoas. Quem tem razão? Ambos, explicará a filosofia. Seres humanos são quarks e são pessoas, cada afirmação num âmbito específico da realidade.
Essa é a unidade que podemos esperar no mundo da ciência contemporânea. Não mais uma unidade nos objetos e termos das diversas áreas do saber, mas uma recondução metódica de cada microcosmo e de cada linguagem a uma realidade una, de cuja complexidade apenas nos aproximamos por métodos distintos e limitados.
Não cabe exigir que as ciências renunciem ao avanço técnico permitido pelo largo processo de especialização. Pelo contrário, devem-se agradecer os novos instrumentos que elas nos dão para compreender o mundo e o ser humano, a partir de perspectivas novas (ainda que limitadas).
Não faz sentido desejar que o cientista se expresse nos termos metafísicos da física aristotélica. O psicólogo deve prosseguir nos estudos dos novos dados empíricos do comportamento humano e não se restringir a discursos antropológicos sobre virtudes e vícios. O economista deve analisar seus dados com base no arcabouço mais avançado de sua ciência e não se deter em especulações morais sobre o preço justo.
A tarefa da reta filosofia no mundo de hoje não é castrar o progresso das ciências particulares, mas integrar suas descobertas específicas ao majestoso edifício do saber humano, composto pela apaixonante multiplicidade de facetas que o ser comporta.
Nessa bela unidade de pequenos mundos distintos entre si, em que cada ramo tem seu brilho próprio e reconhece o lugar e o valor que por direito cabem a todos os demais, poderemos novamente subir em ombros de gigantes, para descobrir horizontes sempre novos.
*Gustavo França é advogado, graduado em Direito pela UERJ e mestre em Filosofia pela UFRJ. Concluiu o Doutorado em Filosofia na Universidad de Navarra, em Pamplona, Espanha. Estuda particularmente Kant, Filosofia Moral, Filosofia do Direito, ética das virtudes, fundamentos da vida intelectual.